ALÉM | Projeto Artes Plásticas - Escultura 2019 | 2020
Têxteis ; Tradição ; Lugar ; Relação ; Família ; Processo; Deslocação
Resumo
Qual o sentido da Escultura enquanto disciplina? É possível expressar memórias, intenções, desejos através de objetos que habitam num espaço? Se durante o ano anterior procurei encontrar as raízes na minha família e nas memórias, este ano, procuro encontrar o meu local e o meu futuro. Na minha prática é evidente a força da tradição e das matérias populares, como resposta à problemática que coloco. Muita desta inspiração provém de artistas portugueses, quer seja na música como José Afonso ou Pedro Barroso, quer seja na literatura como Fernando Pessoa ou Herberto Hélder. Contudo, em Estou Além de António Variações encontro a melhor forma de descrever a intenção do projeto a desenvolver:
«Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar.» [1]
Procurei, através dos Têxteis e da Escultura, encontrar a cultura de uma terra que não é minha, as minhas raízes, o meu futuro. Criei a ideia de uma narrativa que é vivida no processo de deslocação para além. Aqui no Norte, deixo tudo para trás, a minha família, a relação amorosa, a minha casa. É a ideia de adotar uma realidade que não me pertence, mas que pretendo que seja minha.
Intenção
« a·lém |à|
(talvez do latim ad illinc, dali ou ecce hinc, eis ali)
advérbio
1. Mais longe que, mais para lá de.
2. Em lugar afastado de quem fala e de quem ouve. = ACOLÁ, ALI ≠ AQUI, CÁ
3. Da parte de lá de. ≠ AQUÉM
4. Longe.
5. Para mais, em valor ou quantidade.
6. Para o lado de fora. = AFORA
nome masculino
7. A vida depois da morte; a outra vida. = ALÉM-MUNDO, ALÉM-TÚMULO
8. Local afastado.» [2]
No ano passado, explorei de onde vim, do que sou feito, as memórias e as relações, a ligação com as mulheres da minha família (que me passaram a tradição dos têxteis), a ideia de manter objetos que fizeram parte de um passado. Preservar a origem e a herança. Acredito que a família, as pessoas e a cultura são a nossa terra, o local onde nascemos e crescemos é a nossa terra. Por mais importante e participativo que seja no quotidiano, o nosso local, por ser nosso, por ser vivido constantemente, incute-nos uma rotina, um desgaste diário. A exaustão de viver num local, leva-nos à procura de outro, tal como um nómada.
A minha intenção este ano foi desenvolver um projeto que me permitisse explorar a ideia da procura de um lugar, uma terra. A ideia de mudança, quando tomada durante uma relação, implica várias decisões que não dependem totalmente de mim, implica espera, ritmo e cedência. Tendo como base esta ideia de deslocação e adoção de uma cultura que não é a minha, tirando partido da escrita enquanto matéria da imaginação, pretendi desenvolver ao longo do ano projetos que me transportassem para o outro local, que traduzissem esta ideia de mudança, de processo, bem como a ideia da espera e demora, o passar do tempo. Decidi intitular este projeto de Além, uma vez que me transporto para um lugar distante, além do Tejo. É para lá do que vivi, para lá do que sou e de onde sou. Quis criar uma narrativa ao longo do ano que contasse a eventual mudança e o que fui perdendo ao longo do percurso. Se de um lado tenho o que fui, do outro quero ter o que serei. Impossível, evidentemente, definir um destino que terá sempre obstáculos e caminhos diferentes.
Têxteis ; Tradição ; Lugar ; Relação ; Família ; Processo; Deslocação
Resumo
Qual o sentido da Escultura enquanto disciplina? É possível expressar memórias, intenções, desejos através de objetos que habitam num espaço? Se durante o ano anterior procurei encontrar as raízes na minha família e nas memórias, este ano, procuro encontrar o meu local e o meu futuro. Na minha prática é evidente a força da tradição e das matérias populares, como resposta à problemática que coloco. Muita desta inspiração provém de artistas portugueses, quer seja na música como José Afonso ou Pedro Barroso, quer seja na literatura como Fernando Pessoa ou Herberto Hélder. Contudo, em Estou Além de António Variações encontro a melhor forma de descrever a intenção do projeto a desenvolver:
«Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar
Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar.» [1]
Procurei, através dos Têxteis e da Escultura, encontrar a cultura de uma terra que não é minha, as minhas raízes, o meu futuro. Criei a ideia de uma narrativa que é vivida no processo de deslocação para além. Aqui no Norte, deixo tudo para trás, a minha família, a relação amorosa, a minha casa. É a ideia de adotar uma realidade que não me pertence, mas que pretendo que seja minha.
Intenção
« a·lém |à|
(talvez do latim ad illinc, dali ou ecce hinc, eis ali)
advérbio
1. Mais longe que, mais para lá de.
2. Em lugar afastado de quem fala e de quem ouve. = ACOLÁ, ALI ≠ AQUI, CÁ
3. Da parte de lá de. ≠ AQUÉM
4. Longe.
5. Para mais, em valor ou quantidade.
6. Para o lado de fora. = AFORA
nome masculino
7. A vida depois da morte; a outra vida. = ALÉM-MUNDO, ALÉM-TÚMULO
8. Local afastado.» [2]
No ano passado, explorei de onde vim, do que sou feito, as memórias e as relações, a ligação com as mulheres da minha família (que me passaram a tradição dos têxteis), a ideia de manter objetos que fizeram parte de um passado. Preservar a origem e a herança. Acredito que a família, as pessoas e a cultura são a nossa terra, o local onde nascemos e crescemos é a nossa terra. Por mais importante e participativo que seja no quotidiano, o nosso local, por ser nosso, por ser vivido constantemente, incute-nos uma rotina, um desgaste diário. A exaustão de viver num local, leva-nos à procura de outro, tal como um nómada.
A minha intenção este ano foi desenvolver um projeto que me permitisse explorar a ideia da procura de um lugar, uma terra. A ideia de mudança, quando tomada durante uma relação, implica várias decisões que não dependem totalmente de mim, implica espera, ritmo e cedência. Tendo como base esta ideia de deslocação e adoção de uma cultura que não é a minha, tirando partido da escrita enquanto matéria da imaginação, pretendi desenvolver ao longo do ano projetos que me transportassem para o outro local, que traduzissem esta ideia de mudança, de processo, bem como a ideia da espera e demora, o passar do tempo. Decidi intitular este projeto de Além, uma vez que me transporto para um lugar distante, além do Tejo. É para lá do que vivi, para lá do que sou e de onde sou. Quis criar uma narrativa ao longo do ano que contasse a eventual mudança e o que fui perdendo ao longo do percurso. Se de um lado tenho o que fui, do outro quero ter o que serei. Impossível, evidentemente, definir um destino que terá sempre obstáculos e caminhos diferentes.
A Minha Terra Não É Minha, 2019-
Juta, Lã de Arraiolos e Banquinho de Madeira
Tapeçaria: 110x160cm | Banquinho: 17x26x15,5cm
Juta, Lã de Arraiolos e Banquinho de Madeira
Tapeçaria: 110x160cm | Banquinho: 17x26x15,5cm
«Esta terra não é minha,
Mas se eu quizer será ;
Se n’ella tomar amores
Terra minha ficará.» [3]
Sou de uma vila pequena que fica a cerca de cinquenta quilómetros do Porto, típica terra do Norte e Minho. Mas desde miúdo, com os meus doze/treze anos, após uma viagem com os meus pais, que o Alentejo se tornou a região portuguesa com maior interesse, o calor, os campos longos e amarelos, o conforto, a pequenez. Aliado à ideia de querer mudar o meu local, encontrar raízes noutro lugar, surgiu a ideia de me mover para o Alentejo. Há além um abrandamento do ritmo de viver, há as longas esperas, a calma.
Surgiu então um pequeno texto onde se expressa a intensa vontade de deslocar:
A minha terra não é minha. A minha terra, de onde eu venho, tem casas de todas as cores, altas e estreitas. De onde eu venho o rio frio abraça as casas. As ruas são quentes de gente e a saudade habita as casas velhas e húmidas. A torre mais alta vigia a cidade consumida. Aqui já não me resta nada. Os meses secaram a fonte da energia que me entranha. De onde eu venho, eu já não sei.
A máquina que me movimenta abala o sossego de onde vou. Anda a todo o vapor para que encontre o meu canto no mais amarelo dos campos, na casa mais pequena e humilde. Não anseio muito, anseio o que quero e o que sou. Deixo aqui, na minha terra, os que mais me valem. Mas é assim. A necessidade de fugir da azáfama é real. Sonho de artista, reduzir as sociedades a pontos distantes. Encontrar nos pontos cruzados o ardor que me corre por todo o pulso até à artéria saliente do pescoço erguido e orgulhoso.
Onde vou, para onde vou, o sol acaba lá no fundo, na planície sem fim. O dourado da terra é o calor das gentes da vila singela. O azul do céu esbate-se na casa caiada, confunde-se com a moldura da habitação simples. O verde da sombra da azinheira arrefece a saudade de onde sou. Para onde vou os dias são longos e os sonhos acabam cedo. Na minha casa ouvirei a voz mais arrastada e lusófona, que apenas o fado tem. Na minha cadeira terá a manta tão pequena como o meu corpo de miúdo. A meus pés o padrão do tapete da terra. Sentirei na pele a brisa do tempo parado que corre pelas janelas. Lá fora o poejo e os coentros habitam o jardim. Morarei assim.
Oh, para onde vou, de onde vim. Não suportarei a diferença dos locais até que o ritmo da tradição me sossegue. Apenas o calor quente do sol na manhã mais fria me abraçará. Só o trigo seco a raspar na palma da mão tomará conta de mim. Muito me falta, mas estarei onde quero estar.
A minha terra não é minha, é de quem lá mora.
Não esquecendo a minha área de trabalho, os têxteis, e pensando na forte cultura alentejana, encontrei na Tapeçaria de Arraiolos o potencial de trabalho para esta fase. Questionei, até que ponto a tapeçaria podia representar as minhas temáticas. Estes objetos são das maiores tradições portuguesas, são a preservação de um património que começou há cerca de oito séculos e permitem uma variedade infinita de desenhos e padrões, que se pensados, podem responder a vários temas. Como torna-lo mais pessoal? Aliando-o à simbologia familiar.
A demora da transição levou-me à criação de uma tapeçaria carregada de símbolos, que representam as minhas raízes, criando assim uma antítese entre a minha origem e a minha terra (para a qual pretendo mudar). Através de uma tradição que não é da minha terra, relembro e homenageio a minha família, as minhas tradições. Criei aqui a ponte entre as temáticas tratadas no ano anterior com as temáticas deste ano. A ideia de fugir ao que somos é impossível, haverá sempre pontos que nos ligam.
Esta tapeçaria em juta terá cerca de um metro por um metro e meio, e representa um processo lento. Na barra, vou bordando em lã de Arraiolos, vários símbolos importantes para a minha família. Os cravos são a flor da minha bisavó e da minha avó, são a representação da linhagem, uma vez que é possível a partir de uma estaca obter mais cravos. Os leões e as coroas provêm do logotipo da casa (loja) que durante vários anos foi um marco na minha terra, e era o projeto dos meus avós que durante o último ano, aos poucos se foi fechando e atualmente já não existe. Por outro lado, estes dois símbolos quando juntos transmitem uma ideia de nobreza, de família, relacionando assim com os tapetes mais primitivos de Arraiolos, que apenas eram posse de famílias mais abastadas e tidos como património. Sentado num típico banco de bordar da minha mãe, este tapete é um processo de longa duração, que vou fazendo conforme vou esperando pelo amor que há-de vir, como a minha avó esperava pelo meu avô vir do Ultramar. Aos poucos, vou bordando parte da minha história, enquanto espero para que o meu futuro seja o que sempre quis.
O Nosso Lençol Não É Nosso, 2020
Bordado sobre lençol
237x171 cm
Bordado sobre lençol
237x171 cm
«Se d ’esta terra me fòr
Heide levar meus amores;
Não quero deixar raizes
Para outrem colher flores.» [4]
Numa mudança de vida, onde tudo o que temos como a casa, a família, os amigos, as relações, ficam para trás, o que nos fica é agarrar as memórias e os objectos que nos lembram essas vivências. Ao longo do ano, uma das minhas maiores preocupações foi a relação com o companheiro que tinha, se viria comigo, se estaria disposto a mudar e deixar tudo. Com este medo, surgiu a ideia de representar num lençol a relação sexual, uma vez que é dos momentos mais livres e marcantes num namoro. Poder entregar e ser entregue. Este lençol é estranho aos dois, é a novidade e o desconhecido como poderia ter sido o Alentejo para os dois, e veio de uma loja de segunda mão, portanto poderá ter feito parte de um enxoval alheio.
Recorrendo sempre à escrita como método de criação da narrativa, escrevi:
Oh amor, hoje acordei do sonho da noite não dormida e ainda o sol não se via, apenas uma fraca claridade que as nuvens de um laranja rosado mal deixavam passar. Fingi que dormi só para evocar o teu braço pesado sobre mim no frio do inverno. Aqui o frio não se faz sentir, ou sou eu, que já não sinto nada e para mim tudo é tolerado.
Da minha janela junto à cama vejo o campo longo e amarelo que corro todos os dias em busca de ti, e acredito que um dia, ao voltar a casa, estejas lá, à porta, sentado junto ao vaso de cravos cor de rosa. Junto à estrada aqui de casa, as manchas violeta dos cardos guiam o caminho que tantas vezes te imaginei a percorrer. Gostarias de cá ficar, oh amor, como tu gostarias de acordar e ver que o casario lá ao longe é tão branco como o lençol que nos enrodilhou.
Lembro-me de ti sempre que me movo. Mal me lembro de ti, de como és, mas lembro-me de ti porque te amo. Hoje não te vi, nem vi o sol. Oh amor, de ti não tenho o calor, mas tenho o lençol em que nos amamos e onde o jardim brotou. Os cravos do meu norte, os cardos do agora e todas as outras flores que só a minha mãe sabe cuidar. Abrigo-me neste sudário pálido de saudades e que um dia alguém o fez para imacular um enxoval alheio.
Oh amor, as saudades do teu peito fazem tremer o meu, tremo tanto que já não corro os campos, já não observo a porta, tampouco espreito a estrada. Hoje fiquei na cama como tenho ficado desde que para aqui vim. Nunca senti a terra seca, não me lembro sequer da cor da porta, nem sei se os cardos continuam ali. Fico em casa, na cama sozinha ou no cadeirão velho, enrolado em branco sujo.
O nosso lençol não é nosso, é de quem o ama.
Pensei o lençol como o objecto que une dois corpos que se amam, duas pessoas, uma relação. Vejo as flores como um símbolo de carinho, de alegria, são geralmente dadas a outra pessoa num ato de felicidade, como prenda. Junto então a relação sexual e as flores que surgem ao longo do lençol em manchas de vários tamanhos. Para representar estas flores recorro ao bordado, não esquecendo assim a minha origem, uma vez que usei uma parte de um desenho que a minha mãe tinha feito e bordado em 1992. Em forma de triângulo, com várias flores típicas dos bordados da minha zona, mas adaptei-o à minha realidade e troquei uma flor por cardos e acrescentei cravos. Os cardos são uma flor típica do Alentejo, para onde quero ir, os cravos são a flor da minha família, de onde vim. Tem ainda umas florzinhas pequeninas, “que só a minha mãe sabe cuidar”, com quatro pétalas em forma de coração, com as cores do arco-íris. O arco-íris é há alguns anos identificado como um símbolo da comunidade LGBTQI+, fazendo assim ligação à minha sexualidade.
Este lençol é o que guardo da relação, como uma memória que se torna imaculada, substituindo o corpo que não terei ao meu lado, reconfortando-me.
Já Nada É Dourado Como Sempre Quis, 2020
Bordado de algodão sobre linho, borlas em algodão
136X38 cm
Bordado de algodão sobre linho, borlas em algodão
136X38 cm
«Trigo louro, trigo louro,
Quem me déra a tua côr;
A’ sombra do trigo louro
Agarrei o meu amor.» [5]
O pensamento do trabalho artístico é uma consequência do ambiente que nos rodeia. São as relações, as memórias, as pessoas, as experiências, as políticas, os movimentos, que nos fazem pensar e desenvolver projectos. O meu trabalho é totalmente autorreferencial, uma vez que todo ele reflete o que vivi ou o que quero viver, partindo de vivências que já tive. O meu trabalho sou eu e está representado por um corpo-presente ausente. Partindo deste princípio, senti a necessidade de criar um trabalho onde expresse o fracasso da minha relação, onde mostro que consumi todo o amor e não restou nada, exceto as memórias, onde “já nada é dourado como sempre quis”. Sempre a pensar no Alentejo como espaço físico da minha narrativa, escrevi mais um texto onde confesso este fim:
Ceifei! Ceifei amor!
O campo já não é dourado, as espigas foram-se e agora tudo está castanho, sujo. Já não é o mesmo. Ceifei ininterruptamente todo o terreno que outrora, num amanhecer frio, branco e de névoa, eu correra pra te procurar. Aqui, no trigo amarelo e forte, enquanto o sol subia lentamente, o barulho ensurdecedor dos bicos amarelo alaranjado dos melros acordava-me da noite não dormida. Eles não sabem que são o prazer do meu dia. Eles não sabem que não te tenho. Eles não sabem que te amo. São alegres por isso, imagino-os assim, observando os saltos de espiga em espiga. Mais vale ser inocente, crer que o mundo lá fora tem ânimo. Cá dentro, no meu quarto, enrolado no meu lençol branco, o ar é negro como as penas do pássaro.
Ceifei! Ceifei amor!
O campo é agora uma cama de incalculáveis espetos, pequenos e insignificantes. Os meus pés correm sobre as sementes caídas, já não os sinto, mas também não te sinto e isso inquieta-me mais. O campo tem mil espetos e todos eles cravam na minha pele, tão suavemente que parece o teu amor. Sabe tão bem. Alfinetes que espetas no meu corpo, espinhos no coração para que não te sinta. Já não passo destas feridas, do sangue seco junto aos pêlos, da dor de arrancar a crosta. Sabe tão bem. Magoa-me amor! Já não corro mais, não consigo. Deito aqui, onde em tempos melros se alegraram, choro a ausência do que nunca tive. Já nada é dourado como sempre quis, já nada é como sempre quis.
Ceifei! Ceifei-te amor!
Ao longo dos últimos meses, as espigas foram ganhando mais importância para mim, representando essencialmente o cereal que produz o pão, o alimento mais comum em todo o mundo e que tem a maior simplicidade. O pão é o que nos alimenta, e neste texto, as espigas de trigo são o amor. Colho por isso todo o amor que resta, e mesmo que fiquem sementes ou se tente replantar, os melros acabam por aniquilar essa possibilidade. O campo continua fértil mas as sementes já não rebentam. Deste campo apenas restam os espetos das espigas, que me magoam ao correr sobre ele, ao sair dele. Uma relação tem os seus problemas e encará-los é a parte mais complicada, é magoar-nos a nós acima de magoar o outro.
Pensando num típico campo do montado alentejano, onde o sol faz sobressair o amarelo dourado das espigas, e recorrendo à ideia da ceifa e transporte deste trigo enquanto caminho pelo campo, recorri a um alforge para tornar esta ideia mais física. Os alforges alentejanos geralmente são feitos de tecelagem de lã e são mais robustos, uma vez que a sua principal função era o transporte de mercadoria ou de merendas, quando iam para o campo durante o dia. Acredito também que pela sua construção, tivesse a função de manta onde se podiam deitar. Mas, ao vir do Norte, e remetendo muito à minha origem e às tradições da minha família, usei o linho como matéria principal para este objecto. Em cada uma das bolsas bordei um homem, que, se estivessem juntos na mesma cena criariam uma cena de galanteio. Aqui estão quase separados porque a relação também está, apenas se interligam pelo voo dos melros, que estão representados em ambas as bolsas e no meio, não sabendo de onde vêm e pra onde vão. Na bolsa dianteira, represento-me de frente a fazer um feixe de trigo, a juntar todos os pedaços que ficaram do amor. Na bolsa de trás, tem o outro membro da relação de costas a tentar semear de novo, esperando que cresça, mas, conforme vai plantando há um melro que o vai seguindo e comendo as sementes. O alforge é um elemento muito característico do sul do país, geralmente usado por homens e carregado ao ombro, tendo as bolsas junto ao peito e às costas, é como uma segunda camada que abraça o corpo, é próximo à pele.
Conclusão
Ao longo do ano, criei uma narrativa com três trabalhos, onde projeto a minha mudança para o Alentejo. Em todos eles recorri ao têxtil e a algumas práticas inerentes a este para concretizar as minhas ideias. No primeiro trabalho relaciono a minha origem (família) com uma prática tradicional alentejana, incluindo a noção da espera e da longa duração. No segundo, represento as memórias e as vivências que tive no Norte e que quero levar comigo, porque me ensinaram a crescer e mudar. No terceiro concluo com a ceifa de todo o amor que tinha e que deixei para trás, e uso o campo vazio como o medo que pode vir a ser esta mudança, que pode não dar colheita e ser em vão.
Neste projeto recorri aos têxteis, e essencialmente ao bordado, por serem uma prática muito recorrente na minha família há quatro gerações. Para mim faz todo o sentido recorrer às minhas raízes para representar o que sou e o que quero ser. Contudo, esta é uma matéria muito relacionada ao artesanato e portanto torna-se complicado entender a distinção entre artesanato e arte. A verdade é que a partir do momento em que os meus trabalhos me representam, possuem um significado, um sentimento ou um conceito, entram no contexto da arte. O artesanato, por outro lado, geralmente refere-se a peças onde o valor maior reside na técnica e habilidade de produzir, e tem também por norma uma função, quer seja decorativa, quer seja prática. Ou seja, a arte é o reflexo do pensamento e o artesanato é o reflexo da habilidade. Toda a arte tem um pouco de artesanato, e todo o artesanato tem um pouco de arte. Ambos têm o seu valor próprio e ambos são válidos, não podendo desprezar. Ambos exigem um público que os admire e que seja capaz de entender as emoções ou as percepções que transmitem.
O meu projeto e as técnicas a que recorro para o conceber estão aparentemente no limiar entre artesanato e arte, mas, após uma cuidada análise percebemos que estão totalmente dentro da esfera da arte. O meu trabalho está carregado de simbolismo e conceito, o meu trabalho parte das minhas emoções e experiências, e não tem qualquer intuito de ser funcional. Nunca usaria o meu tapete de Arraiolos como adorno, nem usaria o nosso lençol na cama, nem tampouco carregaria as compras no meu alforge. As minhas peças são documentais e matéria de expressão e comunicação.
Entendo o meu trabalho além do que aparenta ser.
[1] VARIAÇÕES, António, Estou Além, in Anjo da Guarda, Edições Valentim de Carvalho, Lisboa, 1983
[2] Além, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/alem (consultado a 15/06/2020)
[3] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 182
[4] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 226
[5] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 241
Ao longo do ano, criei uma narrativa com três trabalhos, onde projeto a minha mudança para o Alentejo. Em todos eles recorri ao têxtil e a algumas práticas inerentes a este para concretizar as minhas ideias. No primeiro trabalho relaciono a minha origem (família) com uma prática tradicional alentejana, incluindo a noção da espera e da longa duração. No segundo, represento as memórias e as vivências que tive no Norte e que quero levar comigo, porque me ensinaram a crescer e mudar. No terceiro concluo com a ceifa de todo o amor que tinha e que deixei para trás, e uso o campo vazio como o medo que pode vir a ser esta mudança, que pode não dar colheita e ser em vão.
Neste projeto recorri aos têxteis, e essencialmente ao bordado, por serem uma prática muito recorrente na minha família há quatro gerações. Para mim faz todo o sentido recorrer às minhas raízes para representar o que sou e o que quero ser. Contudo, esta é uma matéria muito relacionada ao artesanato e portanto torna-se complicado entender a distinção entre artesanato e arte. A verdade é que a partir do momento em que os meus trabalhos me representam, possuem um significado, um sentimento ou um conceito, entram no contexto da arte. O artesanato, por outro lado, geralmente refere-se a peças onde o valor maior reside na técnica e habilidade de produzir, e tem também por norma uma função, quer seja decorativa, quer seja prática. Ou seja, a arte é o reflexo do pensamento e o artesanato é o reflexo da habilidade. Toda a arte tem um pouco de artesanato, e todo o artesanato tem um pouco de arte. Ambos têm o seu valor próprio e ambos são válidos, não podendo desprezar. Ambos exigem um público que os admire e que seja capaz de entender as emoções ou as percepções que transmitem.
O meu projeto e as técnicas a que recorro para o conceber estão aparentemente no limiar entre artesanato e arte, mas, após uma cuidada análise percebemos que estão totalmente dentro da esfera da arte. O meu trabalho está carregado de simbolismo e conceito, o meu trabalho parte das minhas emoções e experiências, e não tem qualquer intuito de ser funcional. Nunca usaria o meu tapete de Arraiolos como adorno, nem usaria o nosso lençol na cama, nem tampouco carregaria as compras no meu alforge. As minhas peças são documentais e matéria de expressão e comunicação.
Entendo o meu trabalho além do que aparenta ser.
[1] VARIAÇÕES, António, Estou Além, in Anjo da Guarda, Edições Valentim de Carvalho, Lisboa, 1983
[2] Além, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, https://dicionario.priberam.org/alem (consultado a 15/06/2020)
[3] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 182
[4] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 226
[5] BRAGA, Theophilo, Cancioneiro Popular Portuguez, Segunda Edição Ampliada, J. A. Rodrigues & Cv – Editores, Lisboa, 1911, p. 241